Crítica do Fenata: Som, fúria, paixão: uma história contada por um idiota

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Os alunos do curso de Letras da UEPG estão preparando textos de crítica sobre os espetáculos da 47ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata). As críticas são orientadas e revisadas pela professora Paola Scheifer. Sobre a peça “Shakespeare, Paixão e Poesia”, participante da Mostra Adulto na noite de quinta (24), leia a crítica:


Som, fúria, paixão: uma história contada por um idiota

“Ela teria de morrer, mais cedo ou mais tarde. Morta. Mais tarde haveria um tempo para essa palavra. Amanhã, e amanhã, e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia, até a última sílaba do registro dos tempos. E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado”. (SHAKESPEARE, 1978, p. 186)

O nosso amor a gente inventa, o nosso ódio também. Inicio repetindo as palavras que ecoaram ao longo de toda a encenação arrebatadora do Grupo de Teatro Cidade de Ponta Grossa. “Shakespeare – Paixão e Poesia” é um espetáculo que nos joga aos leões, ou melhor, aos cães. Penso que Faulkner ao nomear sua maior obra como “Som e Fúria” fez propagar o grito do idiota em meio à tempestade que é a vida humana. Edson Bueno e companhia se apresentam como se tivessem recebido, assim como Faulkner, o dom de gritar em meio à confusão das vozes que estão dentro de todos nós, de ter a real noção de que nós mesmos manejamos aquilo que sentimos, como se nossos sentimentos fossem invenções da nossa monstruosidade e da nossa virtude. É em meio a essa confusão de vozes que Shakespeare se levanta como um monumento, e, aqui, tomo as palavras das personagens de “Shakespeare – Paixão e Poesia”: William Shakespeare não é homem nem mulher, nem se encontra sob o peso da pedra fria de uma lápide.

Shakespeare é, pura e simplesmente, poesia. Quatrocentos anos separam o Shakespeare histórico (embora controverso) de Shakespeare do Grupo de Teatro de nossa cidade. Das profundezas do sono eterno da morte, o bardo inglês se levanta em resposta a um chamado inusitado: uma trupe de teatro que clama por seu nome. Os questionamentos do dramaturgo são provavelmente os questionamentos que teríamos se acordássemos longe do nosso tempo: o mundo continua o mesmo? Talvez? Sim e não? Haveria ainda espaço para o amor? Haveria ainda lugar no coração dos homens para a monstruosidade do amor e para a vingança? Haveria ainda a vaidade? O medo da morte? Nesse momento da encenação, percebemos que, mesmo se passando quatrocentos e tantos anos, o homem prevalece sendo o mesmo. Shakespeare aí se apresenta como aquele que cantou as aflições, ambições, tragédias e amores dos homens de seu tempo e teve, no desconhecido evento que é a morte, o contato com a morte verdadeira. A morte é como um espelho, capaz de mostrar aquilo que somos e fomos em vida.

“Ser ou não ser?”, esta é a questão. A peça busca apresentar a essência do que é ser e não ser humano. Devo dizer, porém, que concordo com aquilo que o Shakespeare em cena afirma, parodiando a conhecida exclamação de Hamlet, há mais mistérios entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã mediocridade. O fantasma que está a nossa frente não é o fantasma de nosso pai, mas é o nosso próprio assombro diante de questões sem solução, questões essas que o Shakespeare, trazido da morte pela reinvenção da arte, busca novamente poetizar. A peça é, dessa forma, uma viagem pela poesia, pela loucura, pela paixão, pelo medo, pelo sonho, pelos males da humanidade, que não enxerga um palmo a frente de seu nariz. É, em resumo, uma viagem pela ironia, pelo riso, pela emoção, pela magia teatral que se justapõe à vida.

As dramatis personae (as personagens) de Shakespeare surgem ao longo da peça como se a elas coubessem o papel de nos ajudar a entender que estamos sendo enganados e, ao mesmo tempo, convencidos de que a verdade crua da peça é um espelho de nós mesmos. “A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz”, afirmou o Macbeth, de Shakespeare. O Macbeth, do Grupo de Teatro Cidade de Ponta Grossa, por sua vez, nos coloca diante da aflição, da tentativa vã de justificar os malfeitos, da encenação que reflete sobre ambição e da tragédia de um homem amaldiçoado. O Rei Lear, que não se distancia de Macbeth, nos faz pensar sobre o orgulho e a vaidade dos homens, sobre a sede de poder e sobre a obscuridade que surge de um drama familiar. É preciso ficar sábio antes de ficar velho, exclama o Bobo, que acompanha Lear na tempestade. Oberon e Puck, por sua vez, cultuam a fantasia, o alimento do espírito, sendo essa mesma fantasia a que dá origem à comédia, à tragédia e ao drama. Da reflexão sobre as paixões em O Sonho de uma Noite de Verão, surge o drama dos Montecchios e Capuletos que nos põe diante do amor beligerante e do ódio amoroso. Bem e mal como julgamos conhecer são aqui faces de um mesmo ator ou atriz. Reafirmo aqui as palavras com que iniciei o texto: o nosso amor a gente inventa, o nosso ódio também.

Devo fazer, nesse momento, uma ressalva: não tomem essa peça somente por esse tom sério com que iniciei o texto. A exploração do humor é um dos fundamentos do trabalho de Bueno e seu grupo. Não um humor gratuito, mas um humor ácido e irônico. Shakespeare é ao mesmo tempo exaltado e ridicularizado. Romeu e Julieta, por exemplo, sem abandonar o tom trágico de sua história, se apresentam quase como Cláudio e Hero na comédia Muito Barulho por Nada. A provocação da plateia por parte de Shakespeare e de sua trupe faz com que compreendamos que a peça toda é uma celebração ao poeta e à poesia. As máscaras risonha e triste são trocadas a todo momento. Assim, o riso dá espaço para a emoção do drama em uma dança frenética ao som de valsa e tambores, um drama embebido em cerveja, cachaça e rum. A ironia traz para a cena temas polêmicos (beijo entre duas mulheres, relacionamentos homoafetivos, assassinato, estupro etc), tecendo simultaneamente suaves e contundentes críticas ao homem de nossa época. É, nesse sentido, um embate entre a verdade do autor, a verdade daqueles que assistem à peça e o que seria a Verdade propriamente dita.

Mas, qual a razão de pedir para que William Shakespeare volte da morte? Quanto a isso, posso afirmar que a peça do Grupo de Teatro de Ponta Grossa se apresenta como um culto e uma expedição ao Teatro. Na companhia de um dos maiores nomes da dramaturgia, os atores que encenam outros atores, que encenam personagens shakespearianos se lançam em uma viagem pela arte teatral e pela poesia. É, dessa forma, uma defesa não só do teatro, mas das artes e dos artistas. Um elogio à farsa. Ao assistir essa peça, é como se a trupe nos revelasse um segredo, por vezes, ignorado: a realidade de que nossas vidas seguem a lógica, de certa forma barroca, do theatrum mundi, ou seja, a vida comparada a uma obra de arte, como se todos nós fôssemos atores e atrizes imersos em um jogo teatral de uma peça absurda, cada um cumprindo seu papel diante das diferentes situações que nos são apresentadas em nosso cotidiano de homens e mulheres comuns.

Resumir a peça a isso, seria reduzi-la a nada. Cabe a mim, ao encerrar esse comentário, dizer que o escrevo com uma alegria imensa. Neste ano, acontece o 47º FENATA, um festival do qual Ponta Grossa se orgulha. O grupo que leva o nome da cidade traz consigo o teatro que ecoa pelas ruas, o teatro da nossa gente. Merde! a esse grupo que se faz ponta de lança nas artes cênicas de Ponta Grossa. A cidade agora também tem, dentro de seu festival, por meio de um grupo de atores, a resposta do incentivo à arte e à cultura. O FENATA se mostra como um espaço privilegiado que acolhe a arte que resiste a todos os ataques, que se espreita pela sombra e vai à luz para desmascarar a farsa de nossa sociedade. Somos, não raras as vezes, o urso devorado pelos cães em praça pública. Somos, em muitos momentos, os cães, prontos para devorar o outro. Somos aqueles que não devemos nos esquecer de que precisamos ficar sábios antes de ficarmos velhos para que, em meio ao som e à fúria de nossas vidas, possamos abrir espaço para nos reinventarmos a partir dos sentimentos que nos são herdados pelo teatro, sejam eles a paixão, o amor, a fúria, imbuídos de poesia.

Texto: Lincoln Felipe Freitas, graduando do 3º ano do curso de Letras Português/Espanhol da Universidade Estadual de Ponta Grossa

Citação: SHAKESPEARE, W. Macbeth. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Foto: Luciane Navarro


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