Crítica do Fenata: E o pato?

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Os alunos do curso de Letras da UEPG estão preparando textos de crítica sobre os espetáculos de todas as noites da 47ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata). As críticas são orientadas e revisadas pela professora Paola Scheifer. Sobre a peça “Translúcido”, que abriu a primeira noite do Fenata, leia a crítica:


E o pato?

“Translúcido”, espetáculo produzido pela companhia Talagadá, de Itapira, São Paulo, apresenta um drama provocativo que se destaca pelo uso da plasticidade de determinados materiais, caracterizados por sua opacidade, transparência ou translucidez, compondo, assim, uma apresentação cujas investigações acerca da palavra translúcido, bem como de seus desdobramentos, formam o fio condutor da peça para abordar o cotidiano. A comunicação não verbal e a sugestividade onírica são o ponto chave dessa produção, marcada por diversas passagens metafóricas, em um universo transitório que está além de nossa lucidez, possibilitando que a dramaturgia se dê de forma única aos olhos de cada espectador.

Elementos como bonecos, máscaras, cores e sons ocupam o palco, propondo um jogo cênico tenso entre si. Ao problematizar as questões do cotidiano, através do onírico, o espetáculo sugere visão transgressora em relação à arte e à vida, possibilitando conexão direta com o público que se sente convidado a (re)pensar as suas próprias relações como sujeito, ampliando o seu olhar a partir do leque de possibilidades de leituras e linguagens que se abrem diante de si sobre a realidade.

 O questionamento sobre o título “Translúcido” pode ser observado de duas maneiras: uma mais diretamente ligada à narrativa e outra à dramaturgia da peça . No que concerne à narrativa, pode-se pensar, por exemplo, a questão da alteridade, quando as personagens trocam entre si partes de corpos retirados do interior de caixas (rostos, seios, genitálias, braços, pernas). Em termos dramatúrgicos , por intermédio dessas trocas entre as personagens, torna-se possível refletir sobre o que parece ser um dos possíveis eixos reflexivos e identitários apresentados pelo drama: até onde eu sou eu? Até onde eu sou você? Até onde eu sei que eu sou eu? Eu posso ser eu? Eu posso ser você?

As respostas para essas questões tornam-se tarefa para o público. Os corpos são matérias atravessadas por contextos histórico-sociais específicos, pois , sem as máscaras, as genitálias, o que nos sobra? Seria isso o que nos distingue, nos separa? Seria apenas isso? Apenas? Se tirarmos aquilo que nos diferencia biologicamente, se tirarmos nossas máscaras, em que nos transformaremos? Essa parece ser uma das leituras possíveis para o drama da Cia. Talagadá: corpos são corpos, são seres vivos, são seres humanos, são vidas, luzes, nas suas realidades cotidianas.

A provocação dramática visual da peça é subsidiada por uma linguagem peculiar aos espetáculos de formas animadas. O público se depara com uma narrativa dramatúrgica caracterizada pela ausência de perfis psicológicos, ausência de um conflito a ser solucionado e enredo não linear. Esses aspectos corroboram o efeito emblemático da peça. Aliás, emblemáticas são as imagens das placas de trânsito que aparecem logo nas primeiras cenas: uma indicando “obras” e outra indicando a presença de animais, no caso, um cervo. Tais figuras são dispostas em janelas, uma de cada lado, separadas por uma porta. O contraste entre essas imagens é notório e metafórico, pois parecem firmar o local do ser humano e do animal: este livre e saltitante, como demonstrado na placa, aquele, em obras, sempre a serviço de si ou de alguém. Outra figura que chama a atenção é o pato, símbolo de imortalidade, desenvoltura e honestidade. No momento em que esse elemento surge na peça, as personagens parecem desconhecê-lo ou não desejá-lo por perto, tanto que abrem a porta da casa e o jogam para dentro dela. Contudo, é esse elemento que surge diante da porta aberta, sob um feixe de luz, ao final do espetáculo.

A obra também apresenta sonoplastia e iluminação muito bem sincronizadas às cenas, as quais se harmonizam aos demais componentes do espetáculo, estando, portanto, no mesmo nível de importância que eles. Bonecos, atores e objetos se amalgamam às cores, cenário e sons em uma relação sinestésica de interdependência. Através da luz, o espectador vislumbra e explora a plasticidade dos elementos em cena, valorizando seus aspectos de cor, profundidade, volume, contrastes, planos e texturas.

O espetáculo restaura o senso estético do público ao não promover uma compreensão racional do drama, tornando o espectador um agente ativo, capaz de desenvolver suas habilidades subjetivas e autônomas de interpretação. Nessa dinâmica, o espectador reage tanto no campo das emoções, quanto no cognitivo, em uma busca furiosa e inquietante de sentido diante daquilo que experimenta, respondendo ou não aos estímulos que lhe são apresentados.

“Translúcido”, além de problematizar o cotidiano, levanta questões humanas da maior relevância à sociedade, temas como sexualidade, morte e demais inquietudes da vida são dramatizados e percebidos a partir da visão do espectador. Enfim, um espetáculo ímpar em termos de sonoplastia, cenário, dramaturgia… e que deixa ao público uma provocação: quem pagará o pato?

Texto: Fatima Ruvinski-Kuzma, graduanda do 4º ano de Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e bolsista CAPES pelo Programa Residência Pedagógica.
Foto: Aline Jasper


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