Crítica do Fenata: Coração Sertão

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Os alunos do curso de Letras da UEPG estão preparando textos de crítica sobre os espetáculos da 47ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata). As críticas são orientadas e revisadas pela professora Paola Scheifer. Sobre a peça “Sertão Hamlet”, participante da Mostra Telmo Faria na noite de sábado (26), leia a crítica:


Coração Sertão

Apagaram-se as luzes e para o sertão eu fui. Lá não chove quando Deus quer, nem quando lhe pedem. Sertão Hamlet é um monólogo ambientado no sertão de Cariri, Ceará, e entre o ser e o não ser, o ator, dramaturgo e diretor Guido Campos foi tudo. Foi, também, uma personagem que conta sua própria história, ao mesmo tempo, sagrada e profana, lícita e ilícita.

O espetáculo, apresentado na Mostra Telmo Faria, do 47º FENATA, foi se construindo aos poucos. Tudo acontecia em frente ao espectador: trocas de figurino, variadas identidades e improvisações feitas por uma só pessoa. A trilha sonora nos levava ao sertão, e a iluminação nos fazia lembrar de um sol árido, repleto de raios misteriosos, carregados de amor, desamor e vingança. 

Sertão Hamlet traz Edilânia, jovem cômica e muito apaixonada. Com ares de inocência, carrega consigo o sofrimento de um estupro brutal. A moça que se guardava para o casamento é mais uma vítima a virar estatística de violência sexual contra a mulher. 

Em Cariri, contexto onde o enredo se desenvolve, trezentos estupros ocorrem por ano, vinte por cento deles seguidos de morte. Um cenário repleto de escuridão e drama faz com que essa humilhante situação transpasse os espectadores, levando-os a experimentar na pele o terror da violência sexual. 

Cenas marcadas pela ausência de falas fazem com que a dor da personagem chegue até nós. O silêncio no teatro nunca fora tão ensurdecedor, e o assoalho do palco B, do Teatro Ópera, rangia como se estivesse chorando a cada cena de sofrimento derramado sobre ele. Abandonada pela família sob a alcunha de moça desonrada, a protagonista segue sua vida com o coração seco, mimeticamente relacionado à paisagem do sertão. Em um dado momento, ao som da interpretação de Nina Simone, Felling Good, ela decide enterrar a história da menina que nela existia. 

Há uma grande interação do ator em cena com o público, por vezes vulgar, por vezes sublime. As diferentes personagens encenadas pelo ator são alternadas ao embalo de músicas que levam o público a cantar com ele. Aos poucos, somos apresentados a uma senhora de noventa e quatro anos, uma nonagenária muito atualizada e que de beata não tem nada. Vestindo um manto azul, azul céu, azul santo, Luiza Maria de Jesus, como era chamada, também já foi muito apaixonada, mas por conta de promessas divinas e problemas de saúde fica sozinha. Refletindo sobre sua própria condição, em cena, a personagem conclui que “A solidão corrói, seja num idoso, numa criança, num jovem, ela corrói e dói”.

Lampião Virgulino Ferreira da Silva é outro personagem interpretado pelo ator da peça. No enredo apresentado, assim como Hamlet, Lampião também teve seu pai assassinado pelo irmão, sendo esse o ponto de convergência na história dos dois. Pouco nos é dado a saber sobre a sua vida, seu discurso nos entrega uma chave quando diz: “se eu não consigo interpretar o Lampião, quem dirá Hamlet, mas o que não posso deixar de citar é a emoção que Guido Campos nos presenteava, uma interpretação fantástica que nos tirava risos e lágrimas e com um olhar que penetrava mais que qualquer bala do cangaço”.

Virgulino e Hamlet, embora dois personagens distanciados historicamente, geograficamente e culturalmente, revelam ao longo da peça aquilo que os aproxima, sua condição essencialmente humana, atravessada pelos mais variados sentimentos de fé, violência, paixão e sofrimento. Ao trazer referências do sertão nordestino e de uma das peças de Shakespeare para o mesmo enredo, o espetáculo promove um mergulho nas inquietudes humanas e evidencia que as questões existenciais presentes nos dramas do dramaturgo inglês são também localizadas no sertanejo brasileiro. A peça revela, também, traços comuns próprios do humano, dos países nórdicos da Europa ao sertão de Cariri, possibilitando um autoexame do coração sertão que, em alguma medida, todos trazem dentro de si.  

Lucas Walker, poeta e graduando do 1º ano de Letras Português/Espanhol pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.  

Foto: Aline Jasper


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