Crítica do Fenata: A melodia de uma riqueza metafórica

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Os alunos do curso de Letras da UEPG estão preparando textos de crítica sobre os espetáculos de todas as noites da 47ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata). As críticas são orientadas e revisadas pela professora Paola Scheifer. Sobre a peça “Eldorado”, participante da Mostra Telmo Farias na noite de quarta (23), leia a crítica:


A melodia de uma riqueza metafórica

O espetáculo “Eldorado”, com texto de autoria do dramaturgo premiado Santiago Serrano e direção de Marcelo Lazzaratto, tem a premissa de alcançar as pequenas poesias do cotidiano e contá-las através da vivência de um homem que não enxerga e de sua relação com seu bem mais precioso, uma sacola, na qual ele descobre posteriormente uma rabeca. A peça convoca o espectador a testemunhar a jornada de autodescobrimento do personagem, promovendo diversas reflexões derivadas de simples referências a certas emoções. “Eldorado”, que vem da cidade de Campinas, São Paulo, é um espetáculo de forte apelo sinestésico ao trazer uma satisfatória justaposição de elementos vocais, corporais, imaginativos e subentendidos.

Salpicado de momentos brutalmente honestos, o espetáculo alterna seu tom entre risos, gritos e confissões emotivas. Durante uma jornada em busca de ouro e de um utópico conceito de Eldorado, o personagem inominado dialoga com sua sacola e atribui a ela sentimentos, gestos e falas que a personificam, tornando-a, assim, sua principal interlocutora, com quem, também, contracena. Tal personificação transpõe o ator e abrange o público, fazendo com que ele se invista no relacionamento entre os dois, o que cria uma ligação entre os três participantes da peça: o espectador, o personagem e o objeto. O modo como o homem se refere ao ser comumente inanimado (“minha menina”, “minha pequena”) torna tangível o afeto que ele nutre pelo objeto e faz com que o público se sinta envolvido na história e adentre à intimidade dessa relação. A busca por Eldorado é admitida pelo protagonista como bem mais que uma busca por riquezas, mas, sim, por uma busca de si, que pressupõe, também, uma trajetória de mudança interior.

Os únicos componentes do cenário são os adereços do homem: uma bolsa de pano, um cobertor fino e uma sacola contendo um instrumento recorrente em certas manifestações culturais brasileiras, a rabeca. A performance idônea do ator torna desnecessário qualquer outro elemento que pudesse ser adicionado na composição das cenas. A alteração da iluminação enquanto o personagem faz sua jornada envolve o público e estimula sua imaginação, levando-o a conceber o cenário a partir de um jogo de luzes que explicita o movimento. O cenário dança, canta e se movimenta em uníssono com o ator, e todos os outros elementos que compõem a peça trabalham entre si para a construção do efeito sinestésico do espetáculo. Os movimentos realizados pelo personagem ganham destaque no fundo minimalista, tal como se apresenta a cenografia da peça, e traçam o
desenho da história, sincronizadamente.

É palpável a angústia revelada pelo andar em círculos do personagem, do correr vorazmente, sem alcançar o que se deseja. Sua tentativa de fugir para longe do passado e ir em busca de um futuro previsto como inalcançável pelo espectador, torna-se doloroso para o espectador que testemunha sua busca. No entanto, em seu real momento catártico, que acontece através da descoberta da rabeca dentro de sua sacola e dos sons que dela são extraídos, o personagem toca energicamente e canta junto à melodia, embalando o público em uma prazerosa sensação de conforto pelo alcance da tão desejada libertação do personagem. A descoberta do instrumento acontece de forma envolvente, como se o personagem despisse um corpo, tateando e cheirando a rabeca a fim de compreender por inteiro aquilo que diminuiria sua sede de contato e cessaria o silêncio que tanto o assombrava.

A peça é sustentada pela performance ímpar de Eduardo Okamoto, que deixa transparecer a história através dos detalhes e das nuances presentes tanto nas falas quanto na corporalidade. O personagem é construído através de constantes variações de voz, destacando-se por sua entonação evocadora de angústia, felicidade ou anseio a cada cena. A interpretação por parte do ator é célebre, dando vida ao espetáculo e tornando cada movimento da encenação significativo e pungente. Okamoto apresenta um encontro exímio e memorável de corporalidade cênica e de interpretação vocal.

O destaque para a trilha sonora acontece no momento da ação final do personagem, no qual ele se encontra totalmente imerso em sua relação com o instrumento e finalmente consegue acabar com o silêncio, o qual diz, durante sua jornada, odiar profundamente. A música envolve o público, que se deixa levar pela melodia e pela sensação de pertencimento que o homem demonstra ao tocar sua rabeca. O protagonista vibra em harmonia com o instrumento, contagiando o espectador.

O protagonista, ao dizer em certo momento que a escuridão devorava seus olhos e também seu corpo, não vislumbrava o efeito que a rabeca lhe proporcionaria mais tarde, colocando-o mais próximo de seu ouro metafórico e da redenção tão desejada. Assim, produzindo música em “sua menina” e vivenciando cada nota, o personagem dá esperança a ele mesmo e aos espectadores de que, enfim, chegou a Eldorado.

Texto: Giovanna Schwingel de Fonseca, graduanda do 2º ano do Curso de Letras Português/Inglês da Universidade Estadual de Ponta Grossa

Foto: Aline Jasper


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