No bicentenário de Ponta Grossa, UEPG traz a história do Cine-Teatro Pax

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Um cinema de luxo voltado à classe trabalhadora. Assim nasceu o Cine-Teatro Pax da Universidade Estadual de Ponta Grossa, há 59 anos. Conhecido por exibir películas, espetáculos e apresentações, o prédio vive uma nova fase. Em 19 de agosto deste ano, o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Ponta Grossa (Compac) realizou o tombamento do edifício, em audiência pública, realizada no Lago de Olarias. A instituição, agora, planeja novas etapas para restauração e reformas. No bicentenário da cidade, a UEPG traz a história do lugar que faz parte da memória e identidade do povo ponta-grossense.

O Pax era o cinema mais distante da área central, inovador em estrutura e tecnologia, com exibição de filmes coloridos desde as as primeiras sessões. “Lembro até hoje do filme Os Dez Mandamentos, que fomos assistir com toda a família. Tão longo que tinha um intervalo para comprar guloseimas”, conta um morador, Santiago Sirkoski. Para Éder Carlos, que frequentou o Pax na adolescência, o cinema era lugar de encontro. “Bati ponto nas matinês dominicais, nos anos 1970. Quase sempre eram dois filmes que faziam a festa dos adolescentes da época”.

A memória de um lugar tão emblemático agora tem garantia da sua permanência, com previsão de restauro e preservação de estruturas. O reitor da UEPG, professor Miguel Sanches Neto, destaca que a UEPG está em fase de reformas e crescimento, a exemplo da restauração do primeiro fórum do interior do Paraná, sede do Museu dos Campos Gerais. “O mesmo tratamento nós daremos ao Cine-Teatro Pax, tombado agora pelo Patrimônio Histórico, como um presente para a cidade e para a comunidade”.

O prédio pertence à UEPG desde 2006, fruto de uma doação da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa. Após reformas, o local retornou a receber apresentações em 2008. Construído em região periférica, o Pax nasceu com a intenção de atender trabalhadores, especialmente os que atuavam na via férrea na região de Oficinas. Construção capitaneada por ferroviários, o Pax surgiu como espaço de sociabilidade de quem morava distante do centro da cidade – tanto que tinha até um ponto de ônibus que parava em frente ao prédio. Em noite de filme, filas se formavam ao redor. “Vi vários filmes, passava muitos do cangaço, faroestes e filmes de japonês e outros vários, era muito bom de ficar nas poltronas na entrada do cinema, e passar pelos corredores para chegar nas cadeiras”, recorda o morador Luiz Carlos Tavares.

O processo de tombamento

Para a historiadora e professora da UEPG, Elizabeth Johansen, o Pax representa um apego e identificação do morador de Oficinas. “Pensar o patrimônio cultural é importante, pela questão de arquitetura, história e por ser construído em uma área suburbana”, ressalta. Além de professora da disciplina de Patrimônio, Elizabeth conhece o processo de tombamento do Pax – ela é representante da UEPG no Compac e fez o parecer do tombamento, além do levantamento histórico, junto aos alunos do curso de Bacharelado em História.

O que culminou na audiência pública de 18 de agosto começou em 2014, quando foi feito o primeiro inventário do imóvel, fruto de um pedido de tombamento ainda nos anos 2000. “Fizemos um parecer a partir das informações que o Departamento de Patrimônio Cultural da Secretaria Municipal de Cultura conseguiu formar e juntar em um processo”, conta.

Em 2021, a UEPG foi notificada pela Prefeitura para “não realizar qualquer alteração que comprometesse a estética ou o valor histórico e arquitetônico” do imóvel. A nova fase veio em 21 de agosto de 2023, quando o Compac informou sobre o tombamento definitivo do imóvel, no Ofício nº 43/2023: “Por possuir importância histórica e/ou arquitetônica relevante para o conjunto e identidade da cidade, deverão ser mantidos os aspectos particulares de sua concepção, admitindo-se, porém, intervenções internas, desde que previamente aprovadas pelo Conselho Municipal de Patrimônio Cultural”.

Na sessão de tombamento, Elizabeth fez a leitura da defesa, com as informações que levantou. “Quando se pensa em tombamento, pensamos numa classe de trabalhadores que foi extremamente importante para que Ponta Grossa tenha as características que ela tem hoje, para que Ponta Grossa seja a cidade que ela é hoje”, destaca. A docente se diz muito feliz em participar de um momento histórico da cidade, junto a acadêmicos da Universidade. “Pensar toda a trajetória desse imóvel, que é tão importante para a cidade de Ponta Grossa, é saber que ele se encontra sob responsabilidade da UEPG, que possui uma preocupação com a conservação na nossa história”.

No início, tudo era pelos ferroviários

Tudo começou quando Rede Viação Paraná-Santa Catarina iniciou suas atividades em Ponta Grossa, em 1943, para desenvolver a rede férrea, primeiramente em Uvaranas. Com a expansão, a empresa edificou casas no Bairro de Oficinas, que à época ficou conhecida como Vila dos Ferroviários. Ali um personagem surge: em 18 de maio de 1952, o missionário capuchinho italiano Frei Elias Zulian foi designado para ser capelão. Eram 267 estações distribuídas em três mil quilômetros, e a ação missionária não se restringiu apenas aos trilhos. O religioso era um visionário: queria atender famílias ferroviárias de forma assistencial e educacional.

Três anos depois da chegada do Frei, já havia planos da construção de um cinema, com a criação do Instituto de Obras Assistenciais da Ordem Terceira Franciscana dos Ferrovários Paranaenses e Catarinenses. Na ata de criação do Instituto, Zulian conta dos planos de um local que fosse para “cinema educativo, teatro, excursões, bibliotecas e serviços de alto-falantes”.

No início da década de 1960, o Instituto recebe um terreno que seria destinado à construção do cinema – era na rua Doutor Antônio Russo, nº 28, onde hoje o prédio do Pax está edificado. Tudo começou como uma força-tarefa entre os ferroviários, como Nelson Antônio Túllio, que ajudou a construir o prédio com as próprias mãos. “Tivemos que derrubar os eucaliptos primeiro, para depois começar o cinema”, registrou no documento do processo de tomamento do Pax, em 2023. Com a retirada dos eucaliptos, iniciaram as obras no terreno, que mede 2.300 m².

Era tarde de 12 de setembro de 1964, às 15h, quando as portas se abriram pela primeira vez. O público poderia contar com 960 poltronas estofadas, local para estacionamento com vigilantes, refrigeração interna (a primeira tecnologia em casas de espetáculos da cidade) e programação de filmes inéditos. O primeiro filme exibido? Viagem ao Centro da Terra. Em entrevista ao Jornal Diário dos Campos, na data da inauguração, Zulian destaca o caráter social do Pax. “Toda a renda, descontadas as parcelas para a manutenção do cinema, será canalizada à construção da cidade ferroviária dos meninos, onde serão recolhidas as crianças de Ponta Grossa cujos progenitores não têm posses para educá-las”.

A notícia projetava que se o Pax fosse construído por empresa privada, custaria em torno de 200 milhões de cruzeiros (em torno de R$ 72 mil, atualmente). Por ser destinado a fins filantrópicos, o prédio custou 150 milhões de cruzeiros, o que nos valores nacionais atuais representam R$ 54 mil. “Dinheiro obtido pela Capelania e todo o povo do bairro, especialmente da classe dos ferroviários”, disse o Jornal, em 13 de setembro.

As sessões eram exibidas às 20h45, em dias de semana; e às 14h, 17h45 e 20h15 aos domingos e feriados. Os espectadores podiam assistir a filmes coloridos e saber da programação pelos jornais impressos, como o que anunciava o filme Segunda Parada de Charles Chaplin, em 27 de setembro: “Cine Pax, a última parada da cinematografia moderna, instalado em Oficinas, uma quadra do asfalto, proporcionando-lhes o máximo de conforto”. As cadeiras estofadas foram encomendadas de Curitiba, consideradas de última linha na época. Na cidade, apenas o Colégio Regente Feijó continha as mesmas poltronas em seu auditório. Depois de 45 dias da inauguração, o Frei anunciava a instalação de ar-condicionado, algo inédito para a época.

Mas a era de ouro do Pax enfrentou alguns obstáculos. Com a dificuldade de trazer ao público novos filmes, Zulian passou a administração do prédio à Empresa Arco Íris, em 1972, com quem ficou responsável até final da década de 1980. Ali começou mais uma fase do Pax, quando foi nomeado como Teatro Municipal Álvaro Augusto Cunha Rocha, em posse da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa.

Um prédio (quase) modernista

O prédio do Cine Teatro Pax é considerado um filho do modernismo brasileiro, era arquitetônica caracterizada por construções diferentes à frente de sua época, como fachadas sem divisórias e iluminação ampla. O documento do parecer do tombamento destaca que o imóvel é “um exemplo da arquitetura modernista, em especial do modernismo paulista, apresentando características como planta livre de estrutura, formas puras sem muitos ornamentos, utilização de brises nas aberturas das fachadas e portas envidraçadas. Tais elementos arquitetônicos tinham como premissa fazer uma arquitetura prática com soluções padronizadas, eficientes e de baixo custo”.

Segundo a arquiteta membro do Compac, Kathleen Biassio, o Pax cumpre apenas com parte dos requisitos para ser considerado um prédio 100% modernista. Os pilotis, por exemplo, que são colunas arredondadas que sustentam a obra e deixam o pavimento térreo livre, estão na parte interna do prédio. O telhado também não possui o terraço-jardim – o teto do Pax foi coberto com telhas e estruturado com madeira. “O Pax poderia ser caracterizado como um início de modernismo, um protomoderno, com essa abertura inteira na fachada que se traduz com um brise [janelas que diminuem a incidência do sol]”.

O grau de tombamento proposto para o Pax é o grau dois, que permite adaptações às novas necessidades. Andrea Tedesco, pró-reitora de planejamento da UEPG, explica que o telhado atual é coberto por telhas francesas, não características do estilo modernista. “Cada telha pesa em torno de 2,6 kg, o que resulta em 41,6 kg por metro quadrado. Isso resulta em excessivo peso e altura da cobertura, dificultando manutenção”. A proposta para o restauro do prédio é substituir a estrutura atual de madeira pela metálica, que é mais leve, e telhas do tipo sanduíche termoacústicas, que diminuirão a carga sobre as paredes.

A substituição das telhas e esquadrias servirão para o isolamento acústico, tanto para não haver ruído durante os eventos internos, quanto em atividades no prédio anexo ao Pax. As esquadrias atuais, em ferro, serão substituídas por alumínio ou PVC, com vidro duplo termoacústico, como o que foi realizado no Campus Central.

Continuidade

O Governo do Estado do Paraná autorizou, em 24 de outubro de 2019, investimento de R$ 428 mil na reforma do prédio histórico Cine-Teatro Pax. O recurso foi destinado pela Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti), com recursos do Fundo Paraná. No mesmo ano,  a instituição lançou a licitação para revitalização/confecção de poltronas para o auditório. Segundo Andrea, o contrato foi rescindido, pois a empresa vencedora não tinha capacidade técnica para revitalização. “Em virtude da necessidade de recuperação do edifício, e das duas licitações fracassadas, a UEPG isolou o edifício para uso em 2020”, informa.

A Proplan já realizou o laudo fotográfico, com mais de 270 imagens, e o levantamento de todas as manifestações patológicas construtivas. No momento, a Universidade produz laudo técnico e o projeto arquitetônico de restauro, o qual será apresentado ao Compac para aprovação no início de 2024. Após a aprovação, serão desenvolvidos os projetos complementares de engenharia, planilha orçamentária e edital de licitação. A expectativa é de que todos os documentos estejam finalizados ainda no primeiro semestre de 2024. Com o orçamento total, a instituição buscará os recursos financeiros para licitação da obra.

Legado coletivo

“O aspecto mais importante de um edifício tombado é que ele possa ser utilizado, e a utilização demanda estruturas atuais, como instalações elétricas, hidráulicas, de prevenção de incêndio e acessibilidade, que permitem a utilização do prédio”, ressalta Kathleen. A arquiteta não vê impedimentos para uma nova estrutura, desde que respeitados os processos de restauro. “O prédio é muito mais do que está no papel. Você entra e sente o espaço, você sente a espacialidade e lembra daqueles momentos. E os edifícios que são públicos, então, têm muito mais valor, porque eu não tenho uma memória que é apenas minha. Eu tenho uma memória que é coletiva”, acrescenta.

Quando um prédio é tombado, é como se ele ganhasse uma eleição. “Porque ele foi eleito como o exemplar mais importante, mais representativo, com características históricas relevantes para aquela determinada sociedade”. Entender a identidade ponta-grossense é valorizar espaços históricos, segundo ela. “Os edifícios históricos tombados são um suporte material das memórias. É como voltar no tempo”. Kathleen lembra das diversas apresentações de balé que fez, quando criança, nos palcos do Pax. Ao subir mais uma vez aquelas escadas, olha a plateia e sentir o espaço, o sentimento é de saudade. “São memórias que vão acrescentando e quando eu conto uma memória para você, ela também fica gravada de forma coletiva. Isso vai se somando. Essas memórias coletivas é que fazem a identidade das sociedades e do nosso Pax”.

Texto: Jéssica Natal | Fotos: Jéssica Natal e arquivo de fotos pessoais


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