Restauro do prédio histórico do Museu Campos Gerais descobre memórias

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São camadas de história e de memória. Com cuidado e atenção, a profissional retira com um bisturi a tinta que recobre as paredes. Camada após camada, vai surgindo um desenho, onde antes tudo estava coberto por tinta. Enquanto isso, em uma sala próxima, a arqueóloga separa centenas de peças de cerâmica. As sacolas vão sendo catalogadas, a partir de onde foram encontrados os materiais.

Além de reparar a estrutura, garantir a segurança e deter a ação do tempo, as obras de restauro do prédio histórico do Museu Campos Gerais, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (MCG-UEPG), descobrem memórias. A escavação arqueológica realizada no local descobriu 20.015 peças de metal, vidro, cerâmica e outros materiais, que ajudam a contar a história de Ponta Grossa. No restauro das paredes, o trabalho minucioso revela afrescos e pinturas que não viam a luz do dia há décadas.

As obras de restauro iniciaram em 7 de fevereiro de 2022 e andam a passos rápidos, considerando o cuidado necessário: até o fim do ano, a previsão é de chegar a 44% de conclusão. “O longo processo para a execução da obra foi e está sendo realizado por diversos profissionais, todos com extremo comprometimento com suas funções técnicas, objetivando melhor atender à comunidade, que poderá em breve usufruir desses espaços”, destaca a pró-reitora de Planejamento da UEPG, professora Andrea Tedesco. A finalização da obra, segundo o prefeito do Campus, Elias Pereira, deve acontecer em meados de 2023.

O imóvel, que fica na esquina das ruas Engenheiro Schamber e Marechal Deodoro, foi tombado pelo Patrimônio Cultural do Paraná em 03 de novembro de 1990. “Por ser um imóvel tombado, há a exigência de que qualquer obra de intervenção esteja dentro dos princípios de restauro, que tem o compromisso de manter a originalidade do imóvel, de preservá-lo”, explica a professora Andrea. “O restauro prevê alterações mínimas no projeto original, respeitando o estilo arquitetônico, as características dos materiais de construção e técnicas construtivas originais”.

É um trabalho minucioso e multidisciplinar. “O processo de restauro envolve vários processos técnicos, como o levantamento de documentos históricos e patrimoniais, memorial descritivo do bem tombado, diagnóstico das ações realizadas em campo, registros fotográficos e questões estruturais do prédio”, explica o prefeito do Campus.

O reitor da UEPG, professor Miguel Sanches Neto, destaca o trabalho de todas as equipes que tornam possível essa obra de restauro. “O investimento no nosso Museu tem um caráter didático: mostrar a todos que é fundamental manter vivos e em pé os prédios que contam a nossa história, e que o desenvolvimento imobiliário pode estar aliado à conservação”, enfatiza. “Este é o maior investimento em restauração de um prédio da história de Ponta Grossa, mais um presente da UEPG à comunidade paranaense”.

“As pátinas do tempo dão valor a um edifício”, diz a arquiteta Kathleen Biassio, responsável pela obra de restauro. Caminhando pelo prédio, ela vai explicando como cada elemento que surge ajuda a contar uma história. Em uma pequena sala, a parede descascada mostrou uma seção com reboco e tijolos diferentes do restante da parede. “Aí dá pra entender que a janela foi alterada ou substituída. O prédio fala conosco”. A partir da fonte direta (o prédio) e das fontes indiretas, como documentos e fotos, se chega à confirmação de alterações feitas ou usos dados aos elementos arquitetônicos. “A vontade é de enaltecer essas características, que muitas vezes são cicatrizes, muitas vezes são elementos não tão bonitos assim, mas que fazem parte da história”.

Sandálias de bebê e carteira encontradas embaixo do piso em um dos cômodos

O prédio

Era 04 de janeiro de 1928. Representantes do Poder Judiciário e personalidades ponta-grossenses participavam de uma grande festa de inauguração do Fórum de Ponta Grossa. O prédio, com localização privilegiada em frente à Catedral, se erguia imponente em uma esquina, ao lado do Clube Ponta-grossense e próximo à Catedral de Sant’Ana, e passaria a fazer parte do cenário do Centro da cidade.

O projeto arquitetônico do prédio de 898,64 m² e dois pavimentos é do engenheiro Ângelo Lopes. A construção ficou a cargo de Paulo Ferreira do Valle, que também construiu outros prédios da cidade, como a Mansão Vila Hilda. Nas fachadas, a arte foi executada por Rodolpho Roedel e pelos irmãos Max e Alberto Wosgrau; enquanto que a carpintaria foi feita por Roberto Amadio. Na entrada, um grande portão de ferro, produzido por Rodolfo Metzentin; e no teto da Sala do Júri, saguão superior e entrada, decorações em relevo feitas por Luiz Collares e Vicente Madalozzo.

Com o passar do tempo, os prédios ao redor ganharam andares e se modernizaram. Por 55 anos, o espaço abrigou o Fórum da Comarca de Ponta Grossa e serviços como a Coletoria Estadual, a Delegacia de Polícia, tabelionatos, Cartórios do Crime e de Registro Civil. De 1983 a 2003, funciona ali o Museu Campos Gerais.

Da Praça Marechal Floriano Peixoto, é possível ver a fachada imponente em estilo eclético. “Aqui foi o primeiro museu que eu visitei”, relembra o jornalista André Salamucha, ao entrar no prédio. Na memória afetiva de tantos ponta-grossenses, é assim que ficou registrado: um espaço de cultura e de história. Mesmo depois de fechado por questões estruturais, que atestaram a necessidade de restauro, o prédio ocupa indelével sua posição em uma esquina movimentada, no coração da cidade.

Nos últimos meses, há novamente movimento no antigo prédio. Trabalhadores, engenheiros, arquitetas, restauradores trabalham para trazer de novo à vida um prédio que deixou sua marca na história dos Campos Gerais.

Janelas didáticas

São abertas “janelas didáticas” por todo o prédio. Nesses espaços, é descascada a pintura para verificar quantas camadas há de tinta e o que está nas camadas inferiores. “Inicialmente realizamos a demarcação dos locais em que seriam abertas as janelas didáticas, procedendo a coleta das estratigrafias, para identificar as camadas de pintura existentes no local”, explica Cristina Sá, a artista plástica e restauradora contratada para esse trabalho. “A prospecção é executada por processo manual, com auxílio de bisturi cirúrgico”. Quando há bolor ou umidade, também podem ser utilizados produtos químicos ácidos. Depois que termina de retirar as camadas superiores de tinta, a artista faz a limpeza com água e aplica verniz acrílico em duas camadas, para proteger a pintura dos elementos externos, como poeira.

A foto antiga da Sala do Júri mostra que havia arabescos ao longo de todo a parte superior das paredes. Eles são afrescos, pinturas feitas enquanto a argamassa ainda estava úmida. Os pigmentos eram misturados em água e depois aplicados sobre a parede ainda “verde”, ou seja, enquanto a massa não havia secado. Isso faz com que os pigmentos fiquem impregnados na parede. Essa é uma técnica utilizada desde a Antiguidade para pintar murais. A janela didática aberta acima da janela comprova justamente isso: os afrescos ainda estão lá, por baixo de quatro camadas de tinta.

Em uma segunda janela didática na Sala do Júri, Cristina encontrou quase que ao acaso uma pintura posterior aos afrescos descobertos no topo da parede. Ao alcance das mãos, tons de dourado e verde surgem ao descascar a pintura. Um elemento decorativo brilha com pigmento dourado, margeado por linhas que imitam um revestimento amadeirado. A artista conta que começou a trabalhar naquele ponto quase que como uma brincadeira, mas que havia a intuição de que poderia haver algo ali.

Paredes de estuque

A construção do antigo Fórum utilizou uma mescla de materiais e técnicas. Não há laje, e o segundo piso é sustentado por vigas de madeira. Por isso, nas paredes do piso superior, que não coincidem com as do piso inferior, era preciso utilizar um material leve. A opção, na época, foi fazer paredes de estuque, que entremeiam tábuas de madeira com uma argamassa de argila e cal. No corredor que leva à Sala do Júri, os visitantes poderão ter um vislumbre de como funciona essa técnica: as janelas didáticas, tanto da pintura quanto da estrutura, ficarão abertas depois de encerrado o restauro, protegidas por acrílico ou verniz. 

Em locais onde havia danos maiores, como infiltrações, foi preciso refazer o estuque. Para tanto, como conta o prefeito do Campus e professor de Engenharia Civil, Elias Pereira, foram retiradas amostras do material, analisadas em laboratórios na UEPG e depois replicadas da forma mais fiel possível. “O professor Eduardo Pereira fez a recomposição do traço no Laboratório de Construção Civil da UEPG, utilizando também os laboratórios multiusuário”, explica. 

Escavações arqueológicas

Antes da construção do novo prédio, foi preciso fazer escavações, acompanhadas por uma profissional da Arqueologia. Ali, foram encontradas mais de 20 mil peças, de metal, vidro, cerâmica e outros materiais. Depois de catalogadas, as peças e o relatório arqueológico vão para o Museu Paranaense, instituição responsável pelo endosso do material. “Espero que daqui a alguns anos, esses materiais possam voltar para seu local de origem e fazer parte de exposições no Museu Campos Gerais”, antecipa a arqueóloga, Jamária Batista Nascimento.

À primeira vista, a imensidão de pequenos cacos de cerâmica, material em que Jamária trabalhava naquele momento, parece não fazer muito sentido. Mas para a profissional, cada objeto conta um pouquinho mais da história do local. “Temos registros documentais de que antes da construção do Fórum, havia uma casa de família, onde morava um dentista”, conta. E os materiais encontrados ajudam a contar essa história: havia ferramentas odontológicas, pedaços de dentes, materiais utilizados nesse ofício. Além disso, foi encontrada uma grande quantidade de louças pintadas, provavelmente importadas, que denotam que aquela família tinha posses.

Outros objetos parecem ser mais recentes, ligados à história do Fórum. Muitos tinteiros de vidro, por exemplo, foram encontrados nas escavações. Rindo, a arquiteta Kathleen mostra uma pequena tampa de um produto de higiene pessoal, com a escrita em francês. “Fomos procurar o que era esse produto, e descobrimos que era utilizado para queda de cabelo”, lembra. São esses pequenos fragmentos do cotidiano de mais de um século atrás que vão construindo a história das pessoas que passaram por ali.

Prédio Anexo

Nos fundos do Museu, um novo prédio toma forma. Com três pavimentos e 277,68 m², o espaço vai abrigar as áreas administrativas, reserva técnica e laboratório de conservação. Além disso, vai permitir o acesso ao segundo pavimento do prédio histórico com acessibilidade, utilizando um elevador e uma passarela que vai interligar os dois prédios.

“Teremos uma edificação moderna e um prédio histórico um ao lado do outro, o que passa a ideia de preservação e de passagem do tempo”, explica o reitor. O prédio anexo terá uma fachada espelhada, que vai refletir a fachada histórica. “O Museu está onde a cidade surge e onde ela cresce. Nós buscamos manter a história, mas também queremos desenvolvimento”.

Licitações

A licitação para restauro do edifício foi realizada, pela primeira vez, em 2008. O professor Miguel Sanches Neto, atual reitor da UEPG, era na época pró-reitor de Extensão e Assuntos Culturais. “Transferido para um dos imóveis do Itaú, por meio de um acordo que Regina de Mello e eu havíamos iniciado uns anos antes com o Itaú Cultural, o edifício em que começou a interiorização da justiça no Paraná corria sério risco de ser descaracterizado”, lembra Sanches, sobre a motivação para o restauro. No entanto, mesmo com os projetos aprovados, não houve recursos para execução da obra.

Em 2010, a UEPG captou R$1 mi via Lei Rouanet, valor utilizado para reforma nos pontos mais emergenciais da estrutura: forro, vigamento e telhado, bem como a pintura externa e interna do pavimento térreo. No entanto, o prédio continuava sem condições de uso pleno.

O valor para execução da obra atual veio em 2019, quando a Universidade foi contemplada com R$ 10,5 milhões do Fundo Nacional de Defesa de Direitos Difusos, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O edital destina recursos para restauração e manutenção de atividades culturais em prédios de importância histórica para o Judiciário, utilizando verbas procedentes das multas e condenações judiciais e danos ao consumidor, entre outros. Em contrapartida, a Universidade vai destinar meio milhão de reais em recursos próprios para a obra.

O projeto arquitetônico básico foi elaborado pela Proplan, enquanto que os demais projetos foram contratados por meio de processo licitatório. “Todo esse processo de elaboração, correções, aprovação nos órgãos competentes e Conselhos de Patrimônio Cultural levou nove meses”, conta a professora Andrea. A empresa contratada para realizar a obra é a Marsou Engenharia Eireli.

O Museu Campos Gerais, no futuro

“Uma coisa é o restauro do prédio e outra, a concepção do Museu que teremos dentro desse prédio”, destaca o diretor do MCG, Niltonci Batista Chaves. Depois de encerradas as obras de restauro do prédio histórico e de construção do prédio anexo, entra em cena uma equipe do Museu Campos Gerais para adaptar as estruturas e colocar em uso um museu moderno, por onde vão passar exposições de múltiplas características.

O diretor conta que já estão sendo feitos contatos e conversas com outros museus, como o Museu Paranaense, o Museu do Ipiranga, da Universidade de São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS-PR) e Museu Oscar Niemeyer (MON). “Vamos buscar recursos técnicos nesses museus referenciais, para que a gente possa dotar o MCG de uma qualidade digna do que é sua própria história”, garante. Além disso, a instituição estuda a viabilidade de contratar um profissional museólogo para orientar o planejamento museal. “Isso envolve a concepção espacial, o uso dos espaços, mobiliário, iluminação, cuidados com temperatura, umidade, tudo que tecnicamente é fundamental para que um museu funcione”.

O prédio que por tantos anos recebeu pessoas, como Fórum e como Museu, anseia por visitantes. Depois de um hiato de quase 20 anos, em breve, as majestosas escadarias do hall de entrada devem finalmente voltar a ser utilizadas.

Texto: Aline Jasper | Fotos: Aline Jasper, Luciane Navarro, Fabio Ansolin, Museu Cenas e das equipes de restauro


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