Ponta Grossa, minha cidade – porJudith Dantas Pimentel

Compartilhe

No aniversário de 197 anos de Ponta Grossa, recuperamos um capítulo do mais belo livro de memórias escrito sobre esta localidade, Numa pequena cidade do grande mundo, da professora Judith Dantas Pimentel, que narra cenas de sua infância nas décadas de 1910 e 1920. Aqui, uma ode a Ponta Grossa e alguns de seus personagens, no registro clássico a partir da pergunta latina: “Ubi sunt qui ante nos fuerunt? – “Onde estão aqueles que foram antes de nós?”

PONTA GROSSA, MINHA CIDADE

Ponta Grossa é uma cidade de nome feio. Isso carece explicar.

O povo da cidade fez uma estória para justificá-lo, muita gente não acreditava nela, mas a estória é bonita, dá até gosto de ouvi-la.

É a estória de uma pombinha que uns homens levaram bem longe, mandaram que ela escolhesse um lugar para eles fazerem uma cidade, daí soltaram-na e ela saiu voando e depois parou na ponta grossa de um morro.

Então os homens fizeram uma porção de casa no lugar onde a pombinha parou, trouxeram as mulheres, foi nascendo gente, o lugar ficou cidade. Ponta Grossa.

Muita gente caçoa do nome de minha cidade, mas isso não tem importância, é porque eles não sabem a estória.

Quem a sabe, acha o nome bonito, até fica vendo a pombinha bem branca, procurando um lugar para os homens morarem. E fica sabendo que a pombinha era inteligente porque escolheu um lugar lindo como quê.

Fica vendo a pombinha voando, parando no monte, o povo gritando, a cidade surgindo.

*

Cercam-na os mais belos campos do mundo. 

Há neles uma multidão de pássaros, que catam como outros pássaros não sabem cantar. Nos jardins, nas árvores, nas grutas, à beira dos riozinhos. Em parte alguma há tão lindos pássaros e tão canoros…

*

Só o céu deve ter campos como os de minha terra. De um verde macio que faz bem olhar. E os campos do céu devem estar cheinhos de pássaros de Ponta Grossa, que Deus deve tê-los escolhido entre todos os pássaros do mundo, porque eles sabem a linguagem divina.

“Pássaros são mesmo miniaturas de anjos”?

*

Mas Ponta Grossa não é apenas verdor de campos e cantar de pássaros. É uma cidade que tem alma. Alma de gente.

Até as pedras da cidade contam casos, e são lindos os casos que elas contam. Por exemplo, aqueles, de como elas procuravam amolecer, quando meninos de pés descalços trilhavam as ruas. De como tinham pena dos meninos do Liberato, de como se abrandavam para eles passarem, para que não magoassem os pés, que o pai tinha muitos filhos, nunca pudera dar-lhes sapatos. 

E como ficavam ásperas para magoar os pés dos meninos ricos, daqueles meninos que cantavam:

Pé de pinto, pé de pato, 

quem nunca teve sapato,

são os filhos do Liberato.

E elas contam ainda uma infinidade de outros casos. De moças bonitas pisando delicadamente nelas, de mendigos trôpegos, de criancinhas correndo…

E a alma da cidade murmura nas campinas infindas e pergunta inquieta: Onde estão aqueles homens do passado, onde está o Basílio Ribas, onde está o Vitor Batista, esses dois velhos lutadores? No cemitério? Homens assim também morrem? E o Bernardo Savio? E as pedras falam também das procissões de Ponta Grossa. A do encontro, a Virgem muito triste, Jesus coroado de espinhos, mulheres levando Maria, homens levando o Senhor, de repente, a mãe dolorosa para, surge o filho tão judiado, e ela não pode acudi-lo e Ele vai embora arrastando aquela cruz pesada, pesada.

Depois Ele passa morto, tantas velas acesas, as velas derrubando quentes lágrimas nas pedras, e atrás de Jesus, as Marias, e a Verônica, e gente e mais gente descalça cumprindo promessas, e muitos ricos de roupa fina; coitadinho de Jesus, ele não gostava de luxo, andava de alpargatas, pregava só a humildade.

Quando Ele ressuscitava, levavam-no outra vez para a rua e o povo punha flores pelos caminhos, e estava alegre.

Parecia até missa do galo, madrugadinha, todos correndo de barriga cheia, naquele tempo a comida dava para todos, não havia tanta gente no mundo…

Pedras de minha terra, alma de minha terra, terra minha, minha e muito amada.

Ponta Grossa do Cine Renascença, do Cine Éden, das sessões das moças às terças-feiras grátis, e entrada barata para os moços, neste dia.

Ponta Grossa dos carnavais inocentes, do Clube Ponta-grossense, do Talia e do Democrata.

Dos corsos alegres pela rua Quinze, tanta gente, tanta serpentina.

Dos primeiros picolés que apareceram num carnaval, todo mundo queria comprá-los, todo mundo sentia que Ponta Grossa já era uma grande cidade, já tinha até picolé.

Ponta Grossa do grupo escolar “Senador Correia”, o único da cidade.

De D. Sarita, tão pequena e tão graciosa, de D. Maria Augusta, braba, mas de quem a gente gostava, tinha-lhe respeito, pois dava aula só para o quarto ano.

Dos dentistas Lucidoro, pai e filho que não sabiam cobrar, por isso morreram pobres.

Do Dr. Loiola, do Dr. Schwartz, do Dr. Carlito, das farmácias do Seu Ismael e de Seu Silveira, todos fazendo caridade.

Do Dr. Soares, o melhor rábula da cidade, que parecia um livro andando. Depois até ficou advogado.

Ponta Grossa do Quartel do 13, das suas festas.

As moças iam namorar os tenentes, uma vez mataram um, não foram as moças que o mataram, foi um homem, a cidade inteira guardou-o, o coitadinho estava longe de casa, todo mundo ficou com pena dele, acompanhou-o até a estação; ele era do Rio, a mãe levou-o embora entre flores e mais flores.

Ponta Grossa do Dia de Finados, tanto respeito, tantas coroas de biscuit, que só saíam das casas nesse dia, já no outro estavam de volta guardadas cuidadosamente em caixas porque ninguém deixava as coroas abandonadas; elas eram cuidadas como joias, iam para o cemitério e voltavam para as casas, ano após ano.

Era lindo levá-las, a gente ia pelo centro da cidade, quem tinha mais coroas era mais importante.

O ruim mesmo era trazê-las de volta. Ninguém mais achava-as bonitas, elas pesavam como chumbo, a gente tinha até vergonha de encontrar conhecidos, vinha pelos matos.

Ponta Grossa, onde morreu o ciganinho louro, e a Roseana, do bordel do lado do Tiro de Guerra, deu-lhe a roupinha de anjo, levou-o para sua casa, quis que ele tivesse um velório debaixo do telhado, com respeito, depois foi no enterro e levou todas as raparigas e convidou os soldados, e os soldados levaram uma porção de presos para o enterro ficar mais bonito, e eles até deram ao ciganinho morto, uma coroa de Nhá Tuca, das mais caras.

Ponta Grossa das serenatas, ponta Grossa dos piqueniques de domingo, no parque Honório.

Onde estará aquela Ponta Grossa? Terá morrido acaso?

Mentira, que não morreu. Está viva de verdade, cresceu, isso sim, cresceu. Ficou bonita de fato.

Edifícios, casas lindas, praças, não praças, jardins, desperdício de beleza.

Olhando muito orgulhosa, lá do alto onde ela está, o casario aumentando, chaminés subindo aos céus, searas em flores se abrindo, trigo ondulando faceiro, e os pinheiros altaneiros e viris. Pinheiros de minha terra, riqueza de meu país.

Não morreu, está bem viva, bem viva no coração dos meninos da cidade, que sabem sua estória, ouviram-na de seus pais, irão contá-la a seus filhos; que ela não morra jamais, no seu passado tão lindo…


Compartilhe

 

Skip to content