

Em meio a fotografias antigas, móveis de casa e brinquedos de infância, a exposição “Memória em Movimento” transformou uma sala de aula do Campus Uvaranas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) em uma grande sala de estar compartilhada. Produzida por alunas do quarto ano da Licenciatura em Artes Visuais, com a colaboração de professores do curso, a exposição reúne obras autorais e objetos afetivos que ajudam a contar suas histórias e resgatar memórias.
Entre as obras da exposição está “21”, criada pela aluna Gabriella Furda, composta por fotografias de família, linhas bordadas por miçangas e pequenos textos manuscritos. A ideia nasceu a partir de uma imagem da avó, registrada quando ela era jovem. “Eu trouxe essas fotos porque eu queria ressignificar elas de algum jeito. Apesar de eu não aparecer em todas as fotos, são recortes de todas as pessoas que, de alguma forma, fizeram eu ser quem eu sou e estar aqui hoje”, relata.
A escolha pela costura sobre papel fotográfico reflete uma tradição de família. Ao lado da avó, estão representadas a mãe, a madrinha, suas tias, além de retratos da própria Gabriella, criança. “Todas elas têm alguma relação com o trabalho manual. Decidi construir a partir da costura para representar isso na minha história. A primeira coisa que aprendi a costurar foi um botão, quem me ensinou foi a minha madrinha, quando eu tinha oito anos. A costura, para mim, foi a primeira forma de expressão artística depois do desenho”, recorda.
A presença da família na obra se estende também ao avô, que perdeu a visão por volta dos 25 anos. Gabriella, ao pensar em como ele poderia interagir com a exposição, decidiu bordar seu nome em braile sobre uma das fotos. “Achei importante que ele pudesse ler, caso venha visitar a exposição. Minha mãe, que aparece bebê no colo dele, foi a última filha cuja fisionomia ele conheceu. Depois disso, não viu mais nenhum dos outros filhos”.
A obra também incorpora pequenos textos manuscritos, nos quais Gabriella registra impressões sobre o passado. Em uma das fotos, seus pais aparecem jovens, ainda no início do relacionamento. “Hoje eles são separados. Então escrevi me perguntando como imaginavam o futuro quando essa foto foi tirada. São divagações, pensamentos que surgiram enquanto eu bordava e escolhia as imagens”. Em outra parte da obra, uma fotografia mostra Gabriella no colo do pai, sentado em frente a um computador. “Ele trabalha com tecnologia, e essa era a forma dele interagir comigo quando eu era criança. Me mostrava música, clipes, coisas que ele gostava. Lembro do dia em que me mostrou o Thriller, do Michael Jackson. Eu tinha cinco anos e fiquei apavorada com os zumbis, mas para ele era muito legal”, conta, rindo.
Gabriella fala sobre a importância de ter uma obra exposta e a insegurança que as alunas ainda têm de colocarem parte de si em público. “Eu fico muito feliz, e ao mesmo tempo um pouco insegura em expor. Nós estamos em uma licenciatura, mas a gente também tem o nosso lugar enquanto artistas. Então eu entendo que seja parte de uma descoberta, uma forma de explorar. Eu tentei registrar a minha expressão do momento, mesmo sabendo que isso vai mudar com o tempo”, relata.
Colaboração de professores
O projeto nasceu durante as aulas da disciplina de Estágio Supervisionado, ministrada pela professora Ana Luiza Ruschel, que viu a necessidade de conhecer melhor as alunas e estimular um olhar mais atento à própria identidade. “Antes de começar o estágio, convidei as alunas a pensarem: de onde eu venho? Qual a minha origem? Como essa história me constitui como pessoa e como futura professora?”, conta. A partir dessas provocações, as estudantes foram desafiada a construir sua árvore genealógica, reunindo documentos, relatos familiares, fotografias e memórias esquecidas.
Segundo a professora, ao refletirem sobre suas próprias memórias, as alunas são incentivadas a reconhecer que seus futuros alunos também carregam histórias de vida únicas. “Não dá para desconsiderar as identidades. Eu quero que elas compreendam que, quando elas entram numa sala de aula com trinta crianças, elas estão lidando com pessoas diferentes, cada uma tem sua história, cada uma tem seus problemas, cada uma tem suas vitórias”, conta.
O que começou como um exercício de pesquisa logo partiu para uma criação artística individual de cada uma, que unissem elementos visuais com um texto. “O objetivo da atividade foi tão alcançado, tão alcançado, que a gente nem precisaria fazer a exposição aqui. Só que ela materializa um processo”, relata Ana. O nome da exposição, “Memória em Movimento”, foi escolhido coletivamente, durante as discussões em sala, e surgiu a partir da proposta: trazer à tona o que estava guardado, tirar os objetos do fundo do baú e transformá-los em arte. “Todo mundo tem algo que carrega um significado e que vai parar num canto qualquer. Então, a gente provocou como poderíamos tirar os achados e perdidos da gaveta”, reflete a professora.
Ela enfatiza que nenhuma das obras foi selecionada de forma isolada. “Aqui há uma coerência entre forma e conteúdo. Ou seja, eles têm um tema, e toda a produção está vinculada a esse tema”. A professora assina a curadoria da exposição ao lado dos professores Diego Divardim, Rafael Semkiw e Jeanine Mafra. Para Ana, a curadoria vai além da organização de obras: é um processo de construção coletiva, escuta e mediação. “Curadoria é estudo da obra, é troca com o outro. A função de um curador numa exposição artística é a de provocar um processo de construção e planejamento de um projeto que possa ser viabilizado. Nada foi imposto”, explica.
Histórias que atravessam gerações
Além das produções das alunas, alguns professores também contribuíram com objetos pessoais. A professora Ana Luiza trouxe para a exposição um pelego de lã de carneiro, relíquia de sua infância no Rio Grande do Sul. “Meu pai tinha um curtume e fazia sapatos com couro, então eu fui criada nesse ambiente. Lembro que tinha um caminhão que carregava não sei quantos desses pelegos, era a coisa mais linda do mundo. Esse aqui ficou como relíquia para mim, é antiquíssimo”, conta. Ao lado do pelego, duas bonecas feitas por ela mesma remetem à infância e às influências que moldaram sua trajetória como artista. “A minha relação com a arte começou com a costura. A minha mãe costurava, a minha avó também. Toda a minha família é ligada à arte. Meu pai é músico, tocou em orquestra; meu irmão fez parte de um conjunto musical; todas minhas irmãs tocam. E eu também toco, mas depois me identifiquei com as artes visuais e caí mais para esse lado”.
Entre os objetos expostos, há três desenhos que datam das décadas de 1950 e 1960, feitos com bico de pena e traços finos em nanquim, parte da contribuição do professor Diego Divardim para a exposição. As obras são de autoria de Décio Antônio de Oliveira, avô paterno do professor. Pernambucano, Décio trabalhou como desenhista técnico para o Exército e se dedicou à cartografia do Brasil. Durante o serviço militar, percorreu diferentes estados e também aproveitou para registrar cenas por onde passou. Foi assim que nasceram os desenhos expostos na UEPG. “Essa aqui ele fez no Maranhão, essa no Piauí, as duas de 1966. Essa outra é mais antiga, de 1952, mas não tem a identificação do lugar. Pelo estilo das casas, acredito que seja de alguma cidade aqui do Sul”, conta Diego. A última transferência do avô foi para Ponta Grossa, onde se aposentou e fixou residência com a família. Aqui, ele se engajou na cena local e foi um dos fundadores da Associação dos Artesãos da cidade, atual Casa do Artesão.
“A minha influência como artista vem principalmente do meu avô, porque eu cresci vendo as obras dele e me encantava muito a forma como ele desenhava. Isso me estimulou a querer desenhar, e foi o que me trouxe para a área das artes visuais”, relata o professor. Quando decidiu seguir esse caminho, procurou o avô para aprender. “Eu mostrava os desenhos que fazia e ele ia me orientando. Dizia: reduza o traço, tire o contorno, enfatize a luz, melhore o volume”, recorda.
Segundo Diego, o avô nunca chegou a dar aulas de desenho oficialmente, mas sempre gostou de compartilhar conhecimento e ensinar quem o procurava. Os primeiros livros de técnica de desenho que Diego estudou foram herdados do avô, que faleceu quando ele tinha 13 anos. Ao ver os desenhos do avô novamente expostos ao público, Diego se reconhece em muitas camadas: como neto, como artista e como professor. “Eu me realizo nisso. Não é algo que me cansa. Trabalhar com arte, para mim, é sempre uma alegria. Não tem preço, não tem salário que pague”, afirma.
A relação com a arte, porém, não veio só pelo lado paterno. O avô materno, que era carpinteiro, também deixou marcas importantes. Na oficina que mantinha nos fundos de casa, Diego gostava de pegar pedaços de madeira para entalhar. Hoje, é professor de escultura. “Meu bisavô era marceneiro, meu avô carpinteiro. Eu emprestava a furadeira dele. Um dia, ele chegou em casa com uma furadeira nova, entregou para mim e disse: ‘Quem quer trabalhar tem que ter sua própria ferramenta’. Aquilo ficou comigo”. A influência dos antepassados do professor é visível nos trabalhos que produz e nas escolhas que fez para sua vida profissional. “Não posso dizer que a minha docência nega o passado da minha família. Na verdade, só acrescenta.”
Outras histórias
A montagem da árvore genealógica envolveu visitas à casa da avó e da tia, pesquisa em álbuns antigos e conversas com familiares para lembrar nomes e histórias esquecidas. Camile explica que, por conta da origem alemã da família paterna, há um traço mais reservado nas conversas, e que esse exercício proposto em aula serviu também como oportunidade para quebrar esse silêncio. “Minha avó é dessas que não senta para contar histórias. Mas quando a gente começa a perguntar, ela vai lembrando, vai falando. Se não fosse por essa atividade, ela mesma não teria contado. E foi assim que eu descobri histórias do casamento, da juventude, do meu avô. Coisas que ela normalmente não contaria”, relata.
Na obra “Lar doce lar”, a estudante Isabele Bassani transformou a história da família em tecido bordado, representando seus pais, avós, tios, primos, irmão e até mesmo bisavós e tataravós, descobertos durante a pesquisa genealógica feita para a disciplina. A ideia de “morada” é um dos eixos da obra. Para Isabele, o lar não é apenas o lugar onde se vive. “A gente costuma pensar que lar é a casa. Mas antes disso, eu fiz morada na barriga da minha mãe, e ela fez morada na da minha avó. Cada pessoa é uma morada, e por mais que não seja diretamente, como no caso dos meus tios, eles também me acolhem. O lar é esse acolhimento”, afirma.
A peça foi pensada como uma forma de homenagear as gerações que a precederam e recuperar um gesto da infância que já não fazia mais parte da rotina. “Comecei a bordar com seis anos, mas fazia tempo que não praticava”, relata. A mãe de Isabele é artesã, as tias também. “Quis trazer o bordado como uma tradição familiar, algo que representasse minhas origens e também minha infância”. Além do bordado, Isabele expôs álbuns de fotos e registros que lembram a infância. “Os aniversários em família eram bem marcantes para mim. Eu e meu irmão fazemos aniversário com um dia de diferença, então as festas eram sempre juntas”, lembra.
As bonecas produzidas por Isabele na infância também foram resgatadas do fundo do armário e levadas para a exposição, como forma de representar um momento que deixou marcas em sua formação. Durante o ensino fundamental, Isabele participou do “Clube das Meninas”, um grupo de atividades manuais coordenado por uma professora, Sonia Gonçalves, que incluía uma escolinha de artesanato. “Era toda segunda-feira à tarde. A gente aprendia culinária, fazia boneca, esculpia. A professora já faleceu, mas lembro dela com muito carinho. Acho que se não fosse por ela e pela minha mãe, talvez eu nem estivesse fazendo Artes Visuais”.
Na obra apresentada por Kamila Premebida, feita com giz e costura sobre o papel, o mapa do Paraná conecta histórias de família e se transforma em território de lembrança e pertencimento. A peça demonstra as raízes da estudante no estado onde nasceu e cresceu, além dos traços que unem suas origens. “Minha família é toda paranaense. Por parte de mãe, são ucranianos que vieram para Prudentópolis e depois se mudaram para Ponta Grossa. Já a parte do meu pai é descendente de alemães. Minha bisavó veio da Alemanha num navio, no começo da guerra”, conta. “Eu sou bem unida com a minha família, tanto por parte de mãe quanto de pai”.
Ao longo da preparação para a exposição, a estudante mergulhou na história da família, conversando com os pais e avós, buscando fotos antigas e fazendo novas descobertas. Foi também nessa troca que Kamila ouviu mais uma vez a história de como os pais se conheceram. Os dois moravam na mesma rua, em Ponta Grossa, a apenas três casas de distância, mas só foram se encontrar num casamento. “É curioso pensar que eles estavam tão próximos um do outro, e só se conheceram ali. Desde então, nunca mais se separaram”.
Além da obra principal, Kamila colaborou com a ambientação da sala de exposição. Entre os objetos que levou estão um aparelho de DVD, que ainda funciona, quadros antigos, panos de crochê e tricô feitos pela mãe, e fotografias que resgatam momentos familiares. O DVD, em especial, carrega boas memórias. “Na minha casa, a gente sempre teve o costume de assistir filmes juntos. Era toda noite. Meu pai me colocava para ver filmes de ação e terror quando eu ainda era criança, ao invés de só ver desenhos. Isso ajudou a aflorar o meu senso artístico”.
A aluna Thainá Wille também levou para compor a exposição uma série de objetos da infância e lembranças de família que marcaram sua trajetória. Entre eles, um pequeno lampião de cristal, um objeto frágil, mas cheio de histórias. O lampião pertenceu à bisavó e passou de geração em geração até chegar ao pai da estudante, que o guardava com muito cuidado na estante da sala. “Quando eu era criança, ele deixava o lampião perto da televisão e dizia que não podia mexer porque era de cristal e podia quebrar. Eu ficava fascinada. Agora, finalmente posso mexer”, conta.
Em outro canto, há uma cadeira que veio do Rio Grande do Sul, onde vive a avó de Thainá, além de um álbum antigo de fotografias. Folhear esse álbum sempre foi, para ela, uma forma de criar vínculo com o avô, que faleceu um ano antes de seu nascimento. “Todo mundo diz que sou parecida com ele. Então ver essas fotos era uma maneira de conhecê-lo.” Com a enchente que atingiu o Rio Grande do Sul recentemente, boa parte das fotografias, móveis e documentos guardados na casa da avó foi perdida. “Parte da casa caiu, muita coisa foi levada. Essas fotos agora são o único registro antigo que temos do meu pai e da minha avó”, relata.
Além dos objetos familiares, Thainá também expôs pinturas feitas por ela mesma quando começou a aprender a desenhar. A mãe guarda esses quadros até hoje e não deixou que a filha se desfizesse deles. “Foram os primeiros. Comecei a pintar com 13 anos. Hoje estou mais voltada para a cerâmica, mas a pintura foi meu primeiro passo”, relata. O interesse pelas artes veio tanto do pai quanto da avó. Ele é tapeceiro e trabalha com artesanato, e foi quem produziu uma poltrona que também está na exposição. Já a avó, que tem ascendência indígena, sempre esteve envolvida com trabalhos manuais. “Cresci nesse meio”, afirma Thainá.
A exposição “Memória em Movimento” segue aberta até o dia 15 de agosto. Os horários de visitação para o público externo são divulgados no perfil do Colegiado de Artes Visuais no Instagram.
Texto e Fotos: João Pizani